“Os enfermeiros têm vivenciado uma degradação permanente e contínua das suas condições laborais”

Ser enfermeiro em Portugal sempre foi uma profissão que obriga a um forte espírito de missão, muita resiliência e sacrifício individual. Para representar e defender os interesses e direitos destes profissionais, surgiu, em 2017, a Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros – ASPE, pela iniciativa de um grupo de enfermeiros “cansados de esperar”. Na primeira edição da Magazine estivemos à conversa com Lúcia Leite, Presidente da ASPE, que nos deu a conhecer os principais desafios e lutas destes profissionais de saúde.

A ASPE assume como principal compromisso representar e defender os legítimos interesses e direitos dos enfermeiros. Poderíamos começar a nossa conversa por conhecer um pouco melhor a ASPE, quais os valores que vêm norteando a sua atuação e de que forma têm contribuído para que as reivindicações sejam atendidas?
A ASPE é um sindicato de nova geração e de baixo custo para os associados, focado exclusivamente na resolução dos problemas dos enfermeiros e que recorre às novas tecnologias para assegurar serviços de proximidade e ajustados à individualidade de cada associado. A evolução e transformação das relações laborais e do Sistema de Saúde impunham uma revolução no sindicalismo que precisa de ser impermeável a interesses político-partidários, mas com capacidade de apresentar propostas fundamentadas e ter grande capacidade negocial e de influência.

A crescente desregulação laboral impõe um sindicalismo novo e forte, com grande representatividade para ser eficaz. Ora, os enfermeiros há mais de 20 anos que se sentem traídos, enganados pelos sindicatos que se deixaram subjugar às políticas do momento. Por isso, na ASPE trabalhamos com afinco, de forma honesta e transparente, com rigor, mas numa atitude construtiva para consolidar a nossa credibilidade junto de todos os stakeholders, mas sobretudo dos enfermeiros. Na ASPE não fazemos angariação ativa de associados, são os enfermeiros que nos procuram porque se identificam com os nossos valores, porque sabem que se precisarem de apoio têm resposta personalizada, por telefone, em menos de 48 horas na maioria das vezes.

Nas últimas décadas as condições laborais dos enfermeiros portugueses têm vindo a degradar-se, com a constante violação dos seus direitos enquanto trabalhadores. Quais são, atualmente, as principais reivindicações destes profissionais de saúde?
Os enfermeiros têm vivenciado uma degradação permanente e contínua das suas condições laborais, com uma constante violação dos seus direitos enquanto trabalhadores, muitas vezes num clima de intimidação inaceitável. Mas tão grave como esta degradação nos locais de trabalho é estarem a ser vítimas de uma embrulhada legislativa que penalizou uma geração de enfermeiros, que ao fim de 20 anos de exercício profissional continuam a receber cerca de 980€ de salário por mês.

Por outro lado, o tratamento desigual no descongelamento da carreira entre enfermeiros e as medidas transitórias da alteração da carreira gerou inversões remuneratórias e hoje temos os enfermeiros com mais anos de serviço e mais qualificados com remuneração igual ou inferior aos mais jovens e menos qualificações. Uma injustiça inaceitável! Uma inconstitucionalidade grosseira! Por isso, a grande prioridade para a ASPE é resolver esta situação, que carece de ação legislativa do Governo e da Assembleia da República para que cada enfermeiro seja colocado na posição correta da tabela remuneratória em função da sua antiguidade, qualificação e avaliação de desempenho.

A segunda prioridade é assinar o primeiro Acordo Coletivo de Trabalho que regule as condições laborais, benefícios e harmonize direitos dos enfermeiros independentemente do regime jurídico do seu contrato de trabalho. Não podemos continuar a estar sujeitos a dois quadros legislativos distintos, o Código do Trabalho e a Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, que não são sensíveis à especificidade laboral da organização do seu trabalho, com turnos 24 horas por dia e 365 dias por ano. Como é que alguém pode aceitar que nunca tenha sido assinado com qualquer sindicato de enfermeiros um ACT estruturante que clarifique o regime legal a aplicar aos enfermeiros?

O vazio legal e a falta de regulamentação coletiva são os principais geradores de abusos, ilegalidades na organização de horários e diferença de tratamento entre enfermeiros que trabalham lado a lado. O regime de aposentação precisa também de ser revisto com urgência. Pela saúde e segurança dos doentes não podemos continuar a aceitar que seja exigido a enfermeiros com mais de 60 anos que assegurem cuidados que carecem de grande destreza mental e elevado esforço físico, bem como uma capacidade de adaptação permanente a novas tecnologias e evidências científicas.


Em 2021, alertou para a necessidade de uma reforma profunda no SNS, capaz de corrigir as injustiças, criar oportunidades de desenvolvimento profissional e de valorizar os seus enfermeiros. Considera que o novo Estatuto do Serviço Nacional de Saúde veio de facto apontar caminhos concretos para a reforma do SNS e para a valorização destes profissionais?
Que o SNS precisa de uma reforma profunda e urgente para não colapsar já toda a gente percebeu! A alteração da Lei de Bases da Saúde, o novo Estatuto do SNS e a criação de uma Direção Executiva são passos basilares para suportar a mudança que é necessária no Sistema de Saúde Português. Mas só servirão o seu propósito se houver coragem política para implementar novas políticas de gestão, financiamento e contratualização que assegurem respostas em rede integrando todas as unidades do SNS, sem territorialismos e interesses ocultos. E sim, as respostas sociais e privadas devem ser complementares onde o serviço público não tenha recursos suficientes, mas sem promiscuidade, sem parasitismo. Sem esquecer, porém, que quem assegura os serviços de saúde não são as instalações e os equipamentos, são os profissionais.

Entendo que sem uma política que coloque o cidadão verdadeiramente no centro do Sistema e considere os profissionais como os alicerces que permitem o seu desenvolvimento, não há estatuto ou Direção Executiva que resolva. É urgente criar condições de trabalho e de remuneração para retermos os bons profissionais que temos, dar-lhes perspetiva de futuro e esperança para que escolham ficar no SNS.

No entanto, tenho muitas reservas quanto a conseguirmos abandonar a visão “medicocentrica” que faz depender todas as decisões de uma única classe profissional, que se acha acima dos restantes elementos da equipa de saúde. Enquanto não rentabilizarmos as competências dos vários profissionais de saúde, incluindo as dos enfermeiros, e se não as colocarmos ao serviço das pessoas, vamos continuar ineficientes, com estatísticas e indicadores muito bons e doentes com falta de cuidados e mortes desnecessárias.

As alterações geodemográficas dos últimos anos forçam políticas de saúde orientadas para a promoção da saúde e prevenção da doença, mas também a respostas de proximidade para uma população envelhecida cada vez mais doente. Não podemos esquecer que os enfermeiros não são números, são profissionais que cuidam de pessoas frágeis e cada vez mais doentes e dependentes. Também não podemos ignorar que a complexidade dos contextos de saúde/doença aumentou muito exigindo mais conhecimento e tempo para cuidar com humanidade e responsabilidade. Não interessa quantos contratamos, mas sim para assegurar que serviços e que cuidados.

Sei bem que os enfermeiros do SNS para além de se sentirem mal pagos, injustamente penalizados entre si e em comparação com os restantes profissionais de saúde, vivem em sofrimento ético permanente entre a sua exaustam e falta de condições laborais e os direitos das pessoas que necessitam dos seus cuidados. Não tenho dúvidas que se não forem resolvidas imediatamente a colocação correta na tabela remuneratória e a regulamentação coletiva de trabalho para se controlarem os abusos muitos enfermeiros vão abandonar a profissão nos próximos meses. Até porque não é difícil conseguir um salário líquido de 1000€ numa atividade menos penosa e que envolve menos sacrifícios e responsabilidade. Espero sinceramente que o primeiro-ministro e o ministro da Saúde tenham consciência da verdadeira emergência que têm nas mãos.